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terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Pedro Cleto entrevista André Diniz

O sempre recomendado blog As Leituras do Pedro entrevistou um dos artistas brasileiros de maior exposição atualmente nos quadrinhos autorais, André Diniz. Fica aqui o agradecimento ao amigo Pedro Cleto por ceder à Quadrinhosfera a oportunidade de passar a seus leitores esta bela entrevista,

Boa leitura!



“Cresci muito como pessoa a fazer este livro."

Depois de inaugurar uma exposição de originais, ainda patente em Beja até 28 de Fevereiro, em trânsito para o Festival de BD de Angoulême que ontem terminou, André Diniz esteve de passagem pelo Porto.
       Por isso, aproveitei para conversar com o criador de “Morro da Favela”, tendo como pretexto o lançamento, esta semana, do livro em Portugal, pela Polvo – obrigado Rui Brito pela informação - ficando a conhecer um pouco melhor um dos autores brasileiros de BD (ou HQ!) mais interessantes do momento.

As Leituras do Pedro – Quem é o André Diniz Fernandes?
André Diniz – Nasci no Brasil a 5 de Setembro de 1975 e faço quadrinhos desde antes de saber ler.
Comecei por editar fanzines, fotocopiados, ainda antes de haver Internet (!) e, no ano 2000, criei a Nona Arte, uma editora de uma pessoa só, lançando dois títulos: “Subversivos – Companheiro Germano”, desenhado pelo Laudo Ferreira, e “Fawcet”, com arte de Flávio Colin. Este último foi marcante, não só pela colaboração com o mestre Colin, mas também porque teve uma boa receptividade e conquistou vários prémios.
Nestes dois livros apenas escrevi os argumentos. Sabia desenhar um pouco, já tinha feito algumas bandas desenhadas, mas sentia que para fazer algo a sério tinha que entregar o desenho a outros autores.
Depois, criei um site cuja intenção era divulgar os meus trabalhos, comecei a incluir obras de outros autores, esgotadas ou de pouca circulação e quando parei, já tinha mais de 450 obras aos quadradinhos.
Com outras obras que fui editando, quando o mercado brasileiro despertou para os quadradinhos, o meu trabalho já era conhecido. Em 2005, quando saiu o meu primeiro livro por um editor “de verdade”, já tinha ganho 12 prémios!
Desde então não editei mais nada sozinho e não sinto nenhuns remorsos!

ALP – “Morro da Favela” é a biografia do fotógrafo Maurício Hora. Como surgiu esta ideia?
AD – Tudo começou durante um almoço em casa da minha mãe, onde comentei que havia muita gente com vidas interessantes que ninguém conhecia e que gostava de fazer a biografia de alguém assim.
Um cunhado meu disse que conhecia o Maurício Hora, fez um apanhado do percurso dele e fiquei bastante curioso. Telefonei-lhe, apresentei-me e disse-lhe de imediato, pelo telefone, que gostava de contar a vida dele em HQ. Fez-se um silêncio… e ele aceitou.
A partir daí, encontramo-nos várias vezes. No Rio de Janeiro, em qualquer sítio há uma favela, vê-se uma favela, mas quase ninguém as conhece de verdade. O Maurício levou-me à “sua” favela – Morro da Providência – várias vezes e descobri coisas boas e coisas más.
A primeira grande surpresa foi ver na favela tantas pessoas armadas como geralmente se vêem pessoas ao telemóvel. Mas, ao mesmo tempo, também descobri que a favela é quase como uma grande família! Claro que nas famílias, às vezes um cunhado mata outro (risos)!
Hoje, entendo perfeitamente que alguém diga que habita numa favela e não quer sair de lá. O Maurício tem uma visão única. A visão de alguém de dentro, mas também a de quem está fora da favela.
Quando escolhi a favela como cenário, não queria que fosse mais uma história de violência, embora soubesse que era impossível eliminá-la completamente…

ALP – Que aspectos o marcaram mais durante a criação de “Morro da Favela”?
AD – Houve muitos. Um dos que mais me marcou, foi quando percebi que ia narrar algo que ninguém poderia imaginar em ficção, quando o Maurício me contou o episódio em que teve de ensinar fotografia a 50 pessoas que não tinham máquinas fotográficas e saiu com elas pela favela, a fazerem enquadramentos com os dedos (forma um rectângulo com os polegares e os indicadores para exemplificar). Ninguém se lembrava de algo assim!
Também me tocou o episódio das visitas que fazia ao pai quando era criança. Comecei logo a imaginar uma cena terrível, numa prisão suja e degrada, com homens mal-encarados e afinal aquelas eram as melhores recordações de infância do Maurício. Ia ver o pai, havia muitas famílias a fazer visitas, brincava com as outras crianças, havia bolos, doces, coisas boas… Era uma verdadeira festa!
Muita da capacidade de emocionar que o livro tem deve-se ao Maurício.
Cresci muito como pessoa a fazer este livro.

ALP – Qual foi a reacção do Maurício Hora à obra pronta?
AD – Ele só quis ver no fim, mas tínhamos um acordo: o que ele não quisesse eu tirava. Na verdade, pouco foi alterado: uma página de que ele não gostou e uma ou outra fala…
Quando terminei entreguei-lhe o livro e fiquei à espera dos comentários. O tempo começou a passar, o editor queria o livro para mandar para a gráfica e nada. Pensei: não gostou. Ganhei coragem e falei com ele. Disse-me que não conseguia ler ais de 2 ou 3 páginas sem desatar a chorar, por sentir que tudo era tão fiel ao que ele tinha vivido.

ALP – O facto de desenhar em “negativo” foi uma opção por se tratar da biografia de um fotógrafo ou foi apenas uma questão estética?
AD – A partir de 2008, comecei a desenhar também. Esqueci tudo o que tinha feito para trás e tentei descobrir qual seria o meu estilo, o traço que mais se adequava ao que eu queria contar.
Tenho a mão muito pesada, parte bicos com facilidade, sinto uma certa dificuldade em trabalhar linhas curvas, delicadas… Procurei influências que me servissem: arte africana, cubismo… Demorei seis meses neste processo, algo bem obsessivo… Foi algo marcante que em grande parte definiu o que hoje. Agora, no cartão de visita, até já escrevo “ilustrador”. E até já fiz trabalhos de ilustração.
Passando ao “Morro da Favela”, como no fim do livro iam ser incluídas fotografias do Marcelo Hara, não quis retratar a favela com um traço rigoroso e realista. Aliás, desenhar uma favela é óptimo para quem não sabe perspectiva. Há edifícios inclinados para um lado, outros para o outro…
Para mostrar o lado rústico, rude daquele local, precisava de um traço assim, anguloso. A questão do “negativo” acabou por surgir durante as pesquisas que fiz, naturalmente, e depois de experimentar algumas páginas optei por ele.

ALP – Já tem o distanciamento necessário para olhar para o Morro da Favela de modo crítico? O que mudaria nele?
AD – Ainda não! Para já não mudaria nada! Mas se daqui a cinco anos continuar a achar o mesmo, haverá algo de errado, quererá dizer que não evoluí nada!

ALP – Depois das edições inglesa e francesa, segue-se a portuguesa. Houve algumas mudanças em relação ao original brasileiro?
AD - O texto é o mesmo, as únicas alterações são a capa, que é nova, e a inclusão de ilustrações que pedi a alguns amigos brasileiros: os gémeos Marcelo e Magno Costa, José Aguiar, Laudo Ferreira, Pablo Mayer, Ricardo Manhães e Will.
Editar em Portugal é muito importante para mim. Estou muito feliz, sinto-me como um fã da Marvel ou da DC Comics que consegue publicar nos Estados Unidos. Quando comecei a interessa-mer mais por quadradinhos li muitas edições portuguesas: a revista “Selecções BD”, álbuns da Meribérica, Astérix, Lucky Luke… que era preciso desencantar nos sebos, a bom preço… Também li revistas portuguesas como a “Grande Reportagem”, que me deslumbrava, pois na época não havia nada semelhante no Brasil.

ALP – Como estão os quadradinhos no Brasil?
AD – Eu estou a viver coisas que nunca imaginei possível!
Há mudanças no Brasil que acredito que vieram para ficar: a forma de ver os quadradinhos, a atenção da comunicação social, a existência de uma secção de HQ em quase todas as livrarias…
Há editoras só de quadrinhos, há grandes editoras com selos de quadrinhos… Mesmo editoras que nunca publicaram HQ, estão abertas a propostas de quadradinhos que se ajustem à sua linha editorial.
Por outro lado, nos últimos anos o governo federal passou a incluir nas listas de livros a distribuir pelas bibliotecas, livros de quadradinhos. Para editores e autores isso é muito bom. Um livro selecionado garante uma tiragem de 15 a 30 mil exemplares, o que é muito bom!

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

As Leituras do Pedro - Little Nemo in Slumberland - Há 107 anos


Mais uma vez chega a você um belíssimo texto de Pedro Cleto. Desta vez o tema é Little Nemo!


Little Nemo in Slumberland - Há 107 anos, na terra em que os sonhos eram a realidade


Com que sonhavam os homens há 107 anos?
Alguns que desejavam voar como os pássaros, sonho acalentado pelo ser humano quase desde que o Homem é Homem, punham no ar os primeiros verdadeiros engenhos voadores a que mais tarde se chamaria aviões. Em muitos países - chamavam-se então colónias - sonhava-se com a liberdade e a independência, mas, nalguns deles, muito tempo teve que passar e muito sangue teve que ser derramado para que esses sonhos se concretizassem. Em Portugal, como também noutras nações, havia quem sonhasse com o fim da monarquia e a implantação da república, o que se tornaria uma realidade entre nós a 5 de Outubro de 1910. Uma outra revolução, a russa, que mergulharia o país na ditadura e num banho de sangue, sabemo-lo hoje, estaria também já na mente de alguns.

Muitas mulheres aspiravam a ser iguais aos homens, no que toca a direitos, deveres, oportunidades e responsabilidades, mas esta é uma luta que hoje ainda tem que continuar em muitas latitudes e não só aos países ditos islâmicos…
Nalguns países, especialmente africanos, ainda havia escravos a sonhar com a liberdade; chegaria oficialmente para todos em 1915, após a assinatura, em St. Germain, de um tratado internacional de abolição da escravatura. Que não impede que continue a existir hoje, umas vezes mais claramente, outras à socapa, sob diferentes nomes…

A outro nível, Júlio Verne morria deixando (d)escritos sonhos sem fim, de viagens por todo o planeta, ao centro da Terra e também à Lua, em engenhos novos e mirabolantes que hoje nos são comuns. E talvez Edgar Rice Burroughs já tivesse na cabeça as bases da história de um homem branco que cresceria entre os macacos - que hoje conhecemos como Tarzan, um dos mitos do século XX - e sonhasse já, também, com viagens espaciais e a descoberta de outros mundos.

Todos estes sonhos, e tantos mais, como todos os sonhos, tinham - e têm - o valor que lhes queiramos dar. O valor que lhes dá quem os sonha; o valor que lhes dá quem os ouve contar, sonhando-os, por isso, também. Entre todos estes sonhos e entre tantos sonhadores, um distinguia-se pela forma como os explanava. Os seus sonhos, que hoje, ainda, podemos também fazer nossos, como tantos puderam, ao longo de 107 anos, mais de um século - um século de mudanças intensas, vividas a uma velocidade cada vez maior - foram transmitidos para o papel, para as enormes folhas de um jornal, o "New York Herald", onde, pela primeira vez, um garoto, de quem quase nada sabemos, para além do seu nome, Little Nemo - literalmente o Pequeno Ninguém, talvez para que cada leitor melhor se pudesse identificar com ele - sonhou fantásticos sonhos passados na terra deles, Slumberland. Sonhos (re)vividos através duma arte - que ainda não se sabia tal - que dava os primeiros passos, ainda trémulos e inseguros, à procura de suportes, técnicas, estilos e temáticas e que via surgir no seu seio uma obra tão notável.

Uma arte que descobria - viria a descobrir mais tarde - neste fabuloso "Little Nemo in Slumberland", tudo aquilo que ela podia/queria/aspirava ser: um desenho fabuloso, uma planificação variada e dinâmica, uma deslumbrante paleta cromática, uma narrativa onírica, fantástica e absorvente.

O seu criador - soa melhor o seu sonhador? - era Zenas Winsor McCay, nascido nos Estados Unidos, em Spring Lake, no Michigan, a 26 de Setembro de 1867. Filho de emigrantes escoceses que tinham chegado à terra de todos os sonhos, uma outra Slumberland, que para tantos foi de pesadelo, ainda hoje é, ainda é mais hoje, até - McCay, aos 19 anos, foi enviado pelo pai para Ypsilanti, Michigan, para estudar comércio num colégio. Foi lá que conheceu um inglês chamado John Goodison, que decidiu experimentar o método de aprendizagem que criara, com diversos alunos, entre os quais aquele McCay que herdara os nomes próprios do patrão do pai. O professor forneceu-lhe todas as ferramentas necessárias para representar objetos no espaço de forma tridimensional. As lições incluíam o desenho de sólidos geométricos e outros objetos, as suas sombras e reflexos, texturas e perspectivas, ensinamentos que McCay utilizaria mais tarde na sua obra gráfica, onde sempre procurou as perspectivas mais originais e os efeitos mais surpreendentes.

Como surpreendente era a forma como ocupava o seu tempo após as lições, no Wonderland de Detroit, um dime museum, uma espécie de circo sedentário que combinava atracções exóticas com espectáculos cómicos e onde, pela primeira vez, ganharia dinheiro com os seus desenhos, pois entretinha-se a retratar os actores, vendendo essas obras a 25 cents.

No princípio da última década do século XIX, McCay mudou-se para Cincinnati onde conheceu, nas escadas do dime museum de Vine Street, a pequena Maud Leonore Dufour, por quem se apaixonou de imediato, apesar dos seus apenas 14 anos. O que não foi impedimento para que, poucas semanas depois, fossem casados por um juiz de paz. 

Ela seria a mãe dos seus filhos Robert Winsor, nascido em 1896, e Marion Elizabeth, em 1897. A estabilidade era palavra desconhecida então e o casal mudava de residência pelo menos duas vezes por ano, o que não impedia McCay de, após sair do emprego, frequentar o mundo muito especial do circo e do espectáculo. A partir de 1886 e durante cerca de uma década, Winsor McCay produziu milhares de desenhos publicitários e cartazes, alguns dos quais painéis gigantes desenhados ao vivo, ao mesmo tempo que, a partir de 1887, colaborava pela primeira vez em jornais, tendo-se estreado no "Commercial Tribune", de Cincinnati. Neste e noutros títulos como a "Life" ou o "Cincinnati Enquirer", deixou magníficas ilustrações de acontecimentos do quotidiano como paradas do exército, engarrafamentos no centro da cidade e outros em que podia dar largas ao seu virtuosismo, ao seu gosto pela espectacularidade e aos seus excepcionais sentidos de perspectiva e de observação. O "Cincinnati Enquirer", no qual também assinou ilustrações humorísticas, viu nascer a sua primeira História em quadrinhos, "The tales of the Jungle Imps of Félix Fiddle", em 1903. Pouco tempo depois partia para Nova Iorque, onde continuou a ilustrar editoriais, cartoons e caricaturas políticas e também HQs. Assim, a partir de 1904, encontramos "Mr. Goodenough" e "Dream of the Rarebit Friend", no "Evening telegram", "Sister's Little Sister's Beau", "Phurious Phinish of Phoolish Philipe's Phunny Phrolics" e "Little Sammy Sneeze", no "New York Herald", e, no ano seguinte, "A Pilgrim's Progress by Mister Bunion", no "Evening telegram" e "Story of Hungry Henrietta", de novo no "New York Herald". Destas destacam-se duas protagonizadas já por crianças, antevendo aquele que seria o seu maior sucesso, "Little Sammy Sneeze", as desventuras de um miúdo possuidor de um espirro com uma invulgar potência destruidora que, por isso, acaba invariavelmente expulso, muitas vezes a pontapé, do local das suas devastações, e "Story of Hungry Henrietta", uma menina insaciável que por isso espalha à sua volta o terror, e ainda " Dream of the Rarebit Friend", que tem por base não sonhos mas intensos e estranhos pesadelos, causados pelo recorrente abuso de um fondue de queijo por parte do protagonista.

Finalmente, a 15 de Outubro de 1905, os leitores do "New York Herald" descobriam pela primeira vez "Little Nemo in Slumberland", aparentemente uma série tematicamente bastante limitada porque, em cada prancha, encontramos Nemo, numa situação que muitas vezes não sabemos se corresponde à realidade ou ao sonho, para no final o descobrirmos a acordar da fantasia que vivera no seu sono, quase sempre caindo abaixo da cama - muitas nódoas negras deve o pequenote ter coleccionado…!

Assim, na prancha inaugural de 15 de Outubro, vemos Omp, um emissário do rei Morfeus, a acordar Nemo para solicitar a sua presença perante o soberano. Apresenta-lhe um cavalo que Nemo monta de imediato, enquanto é avisado que não o deve forçar a correr demasiado.Começando a cruzar-se com estranhas parelhas, um canguru montado por um macaco, um porco por um coelho ou um cão por um sapo, Nemo entusiasma-se perante o desafio de uma corrida, acabando derrubado pela sua montaria numa queda sem fim que termina… no chão do seu quarto, pois tudo não passara de um sonho, concluído com uma queda da cama. Na semana seguinte, o emissário regressa, fazendo a cama de Nemo afundar-se no chão, descobrindo-se este perante um palhaço que o leva por uma densa floresta de cogumelos de empilhar que desabam quando Nemo se descuida e se encosta a um deles, desatando aos gritos com medo de ficar soterrado e… acordando mais uma vez na sua cama. Esta situação repetir-se-ia semana após semana, terminando cada sonho com o regresso à realidade palpável da cama ou do chão onde esta assentava.

Mas aquela aparente limitação temática revelar-se-ia enganadora e, convidado primeiro pelo Rei Morfeus e mais tarde pela sua filha a princesa, Nemo, só seis meses e muitas aventuras e desventuras - muitos sonos e bruscos despertares - mais tarde, transpõe os portões de Slumberland, tendo, no entanto, de esperar até 8 de Julho de 1906 para conhecer a princesa. No entretanto, travara conhecimento com o pérfido anão Flip, que por todos os meios o tentara impedir de conseguir os seus objetivos, mas que mais tarde se tornará seu amigo e companheiro inseparável, dele e da princesa, constituindo com o canibal (!) Imp os protagonistas da onírica prancha dominical. As sucessivas visitas do pequeno Nemo à terra dos sonhos revelam-se fonte inesgotável de aventuras e descobertas, recheadas dos mais estranhos e deslumbrantes cenários, seres e personagens.Gigantes e anões, palhaços e saltimbancos, animais falantes, outros mais reais, encarnações de lendas e superstições, dragões, sereias e tudo o mais que poderia encher os sonhos de um   menino de então. Cenários, seres e personagens de sonho, de puro sonho, apetece escrever. Para começar as histórias - cada sonho - o início é o mais diverso e inaudito possível: pode ser o aparecimento de um emissário de Morfeus, a cama de Nemo a afundar-se no chão ou boiar num mar caseiro, elevar-se a casa no ar engolida por um gigantesco peru, ser soterrada por uma tempestade de neve, aparecer como refúgio de um leão ou de um interminável bando de Nemos, etc., etc..
 
E, com o passar do tempo, cada vez mais McCay faz da última vinheta de cada prancha apenas uma espécie de "(continua)", porque, se nos primeiros tempos, em cada semana Nemo vive um sonho mais ou menos isolado de todos os outros, progressivamente o leitor aprende que na semana seguinte o sonho de Nemo continuará onde foi deixado - não é com isto que sonhamos todos nós, quando acordamos a meio dos nossos melhores sonhos? Com isto, também, McCay dava ao mundo dos sonhos existência própria, porque este não desaparecia com o final de uma prancha - de um sonho - ficava apenas suspenso até à primeira vinheta da página seguinte, uma semana depois… Um aspecto - as histórias em continuação - em que McCay também foi pioneiro, pois este foi um sistema que levaria muitos anos a estabelecer-se como hábito nas histórias em quadrinhos.

Graficamente, "Little Nemo in Slumberland" é difícil de descrever, pois todos os adjectivos parecem limitados para o qualificarem. Deslumbrante, fabuloso, inovador, único, moderno, são os que primeiro me ocorrem. Mais a mais se considerarmos que a banda desenhada, enquanto forma de expressão não contava ainda dez anos (pela data oficial, estabelecida quase um século depois!), embora as suas primeiras manifestações, com o sentido que hoje lhe atribuímos, tivessem ocorrido há já mais de meio século. Em termos gráficos, no Little Nemo de McCay encontramos do mais inovador, arrojado e surpreendente que a banda desenhada já nos deu. Artisticamente pode ser considerado exemplo acabado de Art Nouveau. Em termos de banda desenhada pura e dura, é verdade que nos primeiros tempos, McCay parece algo hesitante em relação ao funcionamento da forma de expressão que escolhera. Numera (desnecessariamente) vinhetas para estabelecer o sentido de leitura, explica em cartuchos de texto por baixo das imagens o que estas descrevem na perfeição, mostra alguma dificuldade em gerir os balões de fala. Questões que virão a revelar-se menores e que desaparecerão progressivamente para dar lugar a um autor que demonstra um invulgar à-vontade com a planificação. 

Em Little Nemo a disposição das vinhetas pela prancha é sempre imprevisível, sendo poucas as pranchas que surgem divididas da mesma forma. McCay tanto segue um esquema mais tradicional, com sucessivas vinhetas regulares, como utiliza vinhetas horizontais e/ou verticais para dar dimensão aos seus mundos de sonho ou situar as personagens - e com elas o leitor - em relação aos elementos do sonho que se deslocam, utiliza vinhetas adjacentes com uma única imagem de fundo, através das quais as personagens se vão deslocando para dar sensação de movimento. Tem pranchas com duas dezenas de vinhetas enquanto outras explodem em meia dúzia ou menos, transforma as letras do título em alimento para Nemo e os seus amigos, faz de vinhetas caleidoscópios ou desenha-as como se os seus heróis fossem vistos em vulgares espelhos deformadores dos que é comum encontrar nas feiras ou parques de diversões (que tanto o atraíam), representa um palácio de lado e depois de pernas para o ar, obrigando as personagens, tão espantadas quanto o leitor, a escolherem novos "pisos" para colocarem os seus pés, sejam eles janelas, paredes ou o que antes era teto, usa e abusa (no bom sentido) de perspectivas invulgares, apresentando as suas personagens de quase todos os ângulos possíveis e imaginários, brinca até com os próprios ícones que criou, sendo o exemplo mais evidente a famosa prancha de 26 de Julho de 1908 em que a cama de Nemo ganha vida, levando-o em passeio com as suas longas pernas.

"Little Nemo in Slumberland" teria diversas vidas. A primeira, iria até 1911, quando terminou o contrato de McCay com o "New York Herald", transferindo-se então o autor com armas, bagagens e heróis para o "New York American", onde a série prosseguiria até 1914, rebaptizada "In the land of Wonderful Dreams". McCay retomá-la-ia entre 1924 e 1926, ficando, pelo meio, um musical inspirado nela, em 1908, e um filme de animação de três minutos, em 1909, outra arte em que Winsor McCay foi pioneiro e mestre - havendo mesmo quem compare a sua importância à de Disney - destacando-se nesta sua faceta artística a curta-metragem "Gertie, the (trained) dinosaur". Nos anos 30, o filho de McCay tentou, sem sucesso público nem capacidade artística, retomar a série, numa experiência de curta duração, já o seu pai falecera, inesperadamente, a 26 de Julho de 1934. As histórias de McCay seriam . pontualmente, recuperados por alguns jornais ao longo dos anos, ou compilados das mais diversas formas e tamanhos, em edições mais ou menos dignas.

Surpreendentemente, "Little Nemo in Slmberland" chegou também a Portugal. Estávamos no princípio dos anos 90 e os Livros Horizonte participaram na co-impressão que reuniu uma dúzia de países, de uma edição organizada e prefaciada por Richard Marschall. 

Porque não éramos merecedores de tanto, porque a edição em capa dura, com sobrecapa colorida e bom papel tinha um preço demasiado elevado para os bolsos lusos ou por qualquer uma das outras razões misteriosas que abundam no mundo da edição de banda desenhada em Portugal, a verdade é que dos quatro volumes previstos, apenas dois, correspondentes às pranchas publicadas originalmente entre 15 de Outubro de 1905 e 30 de Agosto de 1908, viram a luz do dia (e se encontram ainda, com alguma facilidade, em algumas livrarias ou em feiras de saldos).

Agora, tantos anos passados, "Little Nemo in Slumberland", umas tantas páginas aos quadradinhos, velhas de 107 anos, fará ainda sentido? Não na obrigatória evocação do clássico, não na defesa e apresentação de uma obra que é intemporal (passe o paradoxo que se segue), mas na atualidade dessa mesma obra, na sua legibilidade, hoje, em 2012? O primeiro impulso é responder sim, claro, qual é a dúvida. Pelo pouco que atrás ficou escrito, por tudo aquilo que a sua leitura revela. Mas, tematicamente, serão os sonhos de Nemo - de McCay - ainda sonhados hoje? Sonharão os mais novos, ainda, com mundos encantados e princesas encantadoras, anões e gigantes, palhaços mil, com mundos maravilhosos, palácios faustosos, com o inenarrável e prodigioso universo com que McCay deslumbrou Nemo e os seus muitos leitores? Serão estes sonhos ainda capazes de encantar as novas gerações? A resposta custa a escrever, mas penso que é não. 

Infelizmente - por nossa culpa, também por nossa culpa - o imaginário infanto-juvenil de hoje em dia perdeu muito - tudo? - da pureza, sensibilidade e encanto que tinha há um século e que McCay tão bem soube captar e expor no papel. A violência, a falta de valores humanos, éticos e morais, o orgulho, o preconceito, a onipresença do sexo pelo sexo, o elogio da imbecilidade, ocupam-no hoje (quase?) na totalidade. Fazem de pesadelo aquele que devia ser um mundo de sonho, na idade dos sonhos. Definitivamente? Não sei. A resposta caberá a cada um de nós, pais, tios, professores, adultos, "escrevinhadores" de jornais e blogs e tantos outros…
Mas acredito que a leitura de "Little Nemo in Slumberland" poderá contribuir para o modificar. Bons sonhos!

(Versão revista do texto publicado originalmente no BDJornal #6, de Outubro de 2005)

Texto Originalmente publicado em:  http://asleiturasdopedro.blogspot.com.br

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

As Leituras do Pedro: Tintin em Portugal


Mais uma vez chega a você, caro leitor, via Quadrinhosfera, um belo artigo do crítico de HQ (BD em Portugal) Pedro Cleto. Desta vez em pauta o fim do Tintin Português. Uma leitura interessante, tanto aos amigos portugueses  quanto aos aficionados em quadrinhos em geral.

Boa leitura!

Tintin português: o fim há 30 anos*

 Há 30 anos chegava aos quiosques o último número do Tintin português que, ao longo de 15 anos, publicou cerca de 750 números com o melhor da banda desenhada franco-belga.
Essa longa aventura editorial começou a 1 de Junho de 1968 e destacou-se desde logo pela sua elevada qualidade gráfica, principal razão para o seu preço elevado – 5$00, o dobro do seu concorrente, mais popular, o Mundo de Aventuras.
Na chefia da redacção distinguiram-se dois nomes que fariam dela uma das mais amadas revistas infanto-juvenis portuguesas: Dinis Machado e Vasco Granja. Os artigos sobre BD (“Tintin por Tintin”) e o correio dos leitores (“Tu escreves… Tintin responde”) eram pontos fortes a par, claro está, de um conteúdo seleccionado entre o melhor que publicavam o seu congénere belga – Tintin, Blake e Mortimer, Clorifila, Red Dust, Bernard Prince… - e a inovadora “Pilote” – Astérix, Lucky Luke, Valérian, Bluberry…
Estes e muitos outros heróis, cujas aventuras eram publicadas ao ritmo de uma ou duas páginas semanais, terminadas com um desafiador (continua), fizeram vibrar e sonhar uma geração, aquela que hoje tem maior poder de compra, o que explica que este seja, actualmente, um dos títulos mais procurados por coleccionadores e antigos leitores. Por isso, o Tintin português, completo, encadernado com as capas originais, pode valer cerca de dois mil euros, em função do seu estado.
A aposta em autores portugueses foi escassa mas ao Tintin coube o mérito de “descobrir” Fernando Relvas, autor do Espião Acácio ou de L123, que continuaria a brilhar depois nas páginas do Se7e, e de ter revelado obras mais adultas como Corto Maltese (de Hugo Pratt), The Spirit (Will Eisner) ou A Sombra do Corvo (Didier Comés).
Os problemas financeiros que então afectaram a Livraria Internacional, detentora do título, apressaram o seu final, não anunciado, com histórias incompletas, num número cuja capa nem sequer apresentava qualquer dos seus heróis, num triste prenúncio do progressivo desaparecimento das revistas de BD em Portugal.
Nota final: Para quem quiser fazer uma ideia mais completa do que foi este título, aconselho o exaustivo Inventário da Revista Portuguesa Tintin, da autoria de José Vítor Silva, que enumera todas as histórias, séries, autores e artigos nele publicados.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

As Leituras do Pedro - Mônica e Cebola, o casamento nos quadrinhos


Mais uma vez a Quadrinhosfera tráz a seus leitores um artigo de autoria do crítico de quadrinhos português Pedro Cleto, que desta vez fala sobre o casamento de Mônica e Cebola e apartir disso conta um pouco da história dos casamentos nos quadrinhos.
Boa leitura!




             
           A notícia chegou há dias: Mônica e Cebolinha (aliás Cebola) vão dar o nó, depois de décadas de planos infalíveis e dolorosas coelhadas.

            O feliz acontecimento terá lugar no nº 50 da revista Turma da Mônica Jovem, à venda em breve no Brasil (e seis meses depois em Portugal), mas dele apenas se conhece o “Convite de Casamento” da Mônica e do Cebola “para o dia mais feliz” das suas vidas e, até agora, ambos eram apenas adolescentes.
              A exploração de uma realidade paralela, uma viagem ao futuro ou a emulação de um casal de heróis de outra série, poderão ser algumas das possibilidades exploradas pela história.




             E se esta união já esteve próxima várias vezes, nas adaptações de clássicos da literatura e do cinema protagonizados pela Turma da Mônica, desta vez, possivelmente, também não passará do convite, sendo apenas um truque de marketing com o propósito de elevar as vendas da revista mais procurada das edições Maurício de Sousa, que narra as aventuras das versões adolescentes de Mônica, Cebolinha, Cascão ou Magali. O mesmo já aconteceu na edição nº34, quando, perante o declínio das vendas, os dois começaram a namorar, tendo a tiragem global desse número ultrapassado o meio milhão de exemplares.


            O mesmo objectivo – melhorar as vendas – esteve na base de decisões de sinal contrário tomadas recentemente pela Marvel e a DC Comics. Esta última, na sequência do “reinício” da cronologia do seu universo, feito há cerca de um ano, para eliminar muitas das discrepâncias existentes e ajustá-lo à cronologia cinematográfica – pois os direitos para o cinema são, actualmente, a principal fonte de receitas das editoras de super-heróis - acaba de anunciar que o Super-Homem, que após 15 anos deixou de estar casado com Lois Lane, vai iniciar uma relação com a Mulher Maravilha (Wonder Woman). Ao longo dos anos, os dois super-heróis - que segundo muitos pareciam destinados um ao outro - tiveram breves relações mais do que uma vez e em realidades alternativas chegaram mesmo a gerar filhos, mas os seus caminhos acabaram sempre por se separar.

           




   Na Marvel, o primeiro grande abalo sentimental ocorreu em 2008 e foi a separação de Peter Parker/Homem-Aranha e Mary Jane, cuja relação deixou de existir num passe de magia – que “apagou” mais de duas décadas de histórias - como resultado de um acordo com Mefisto, para salvar a vida da tia May, ferida num tiroteio.
       O objectivo da Marvel era permitir uma maior identificação do seu público-alvo (adolescentes/jovens) com o super-herói aracnídeo.
            O invulgar acontecimento, que levantou grande celeuma entre os fãs, teria uma explicação dois anos mais tarde, na história “Um momento no tempo”, agora disponível nos quiosques portugueses , na revista “Homem-Aranha” #121.
            Nela, o relato actual é entrecortado com páginas da história de 1987 que narrava o casamento dos dois, para explicar (aos leitores mais antigos e descontentes) porque razão ele nunca chegou a existir… Pelo menos, até que interesses comerciais mais fortes obriguem a nova remodelação cronológica!
          Ainda na Marvel, recentemente, Pantera Negra e Tempestade, cujo casamento tinha sido celebrado há 6 anos, também romperam, o que indicia um eventual regresso da super-heroína aos X-Men e um papel de maior preponderância em mais uma reformulação - Marvel Now! - anunciada para Outubro.







               Se é verdade que todas estas mudanças têm em primeiro lugar motivações financeiras, não deixam também de ser um reflexo das metamorfoses experimentadas pela sociedade actual, o que explica, por exemplo, o primeiro casamento gay dos quadradinhos de super-heróis, entre o X-Men Estrela Polar e Kyle, que teve lugar há poucos meses.
     Longe vai o tempo das relações estáveis e duradouras nos quadradinhos, como as personificadas pelo Príncipe Valente ou Thorgal, que casaram, constituíram família e – apesar de todas as aventuras, provações e peripécias – envelheceram juntos.
             Há muitos outros, como o Fantasma, Mandrake e Martin Mystère ou mesmo o Super-Homem e o Homem-Aranha, tiveram noivas (que pareciam eternas) ao longo de décadas, até à “febre casamenteira” que, qual epidemia, afectou os quadradinhos a partir da década de 1970, levando ao altar bom número de heróis de papel até aí solteirões.





(Versão revista do texto publicado no Jornal de Notícias de 17 de Setembro de 2012)